Não há dúvida de que a queda do regime de Bashar al-Assad na Síria em 8 de dezembro de 2024 causou preocupação e confusão a milhões de pessoas, não apenas no Oriente Médio, como também internacionalmente. A principal razão para isso foi que, embora fosse uma ditadura brutal, era vista por muitos como uma aliada do povo palestino, que está vivendo o pesadelo genocida infligido a eles pelo estado israelense em estreita colaboração com seus aliados “democráticos”, “livres” e “civilizados” do Ocidente.
Esse quadro contraditório se reflete na esquerda anticapitalista (“marxista” ou “quase marxista”).
Assim, temos, por um lado, visões que indireta ou diretamente apoiam o regime de Assad com base no fato de que ele era “anti-imperialista” (ou seja, contra os EUA e a UE). E, por outro lado, visões que apoiavam sua derrubada sob a justificativa de que um regime ditatorial brutal estava sendo derrubado e que dias melhores estavam por vir para o povo sírio.
Em nossa opinião, ambas as abordagens estão equivocadas. As organizações da classe trabalhadora, especialmente as organizações da esquerda anticapitalista, não têm obrigação de escolher lados quando a escolha é entre a cruz e a espada; ou seja, quando se trata do conflito de forças reacionárias, entre diferentes representantes de interesses capitalistas-imperialistas. Pelo contrário, em tais casos, a esquerda deve traçar seu próprio curso independente e apresentar suas próprias propostas independentes baseadas em independência de classe.
A seguir, discutiremos essas e outras questões levantadas pela revolta na Síria em alguns detalhes.
1. Por que o regime entrou em colapso tão rápido?
O colapso do regime de Assad foi seguido por várias análises, nos círculos de esquerda, enfatizando o papel desempenhado pelas potências ocidentais e outras forças externas, como Israel e Turquia. Esses fatores realmente desempenharam um papel, mas não o decisivo. Essas visões ignoram o ponto mais importante: o regime entrou em colapso “por dentro”, como um castelo de cartas.
Foi um desenvolvimento que ninguém esperava. Não apenas o regime em si, não apenas seus aliados (Rússia, Irã, Hezbollah, etc.), mas tampouco seus inimigos no Ocidente, todos foram pegos de surpresa. A mídia ocidental não tentou esconder sua surpresa com a queda de Assad. Os serviços de inteligência estavam no escuro. As milícias Hayat Tahrir al-Sham (HTS), que lançaram sua ofensiva de Idlib no noroeste, então seguiram para Aleppo e depois para Damasco via Hama e Homs (ver os mapas), assim como seus aliados em outras partes da Síria, que estavam planejando um cerco conjunto a Damasco, ficaram surpresos quando viram que o HTS estava dando “um passeio”, sem encontrar qualquer resistência.
As milícias armadas do HTS e seus aliados não passavam de 10 a 30 mil homens de acordo com estimativas existentes (números mais precisos não foram relatados na mídia). Em circunstâncias diferentes, essa teria sido uma força insignificante em comparação com as forças de segurança de um estado de 25 milhões de pessoas. No entanto, eles levaram apenas 12 dias para completar sua marcha para Damasco, enquanto o número de homens armados do HTS que “ocuparam” Damasco, de acordo com o The Economist, não passou de 1.200!
Em outras palavras, simplesmente não havia forças dispostas a apoiar o regime. Isso só pode ser explicado por um fator: o total isolamento social do regime!
A explicação para isso não é difícil de imaginar: mais de 13 anos de guerra civil, repressão, tortura, prisões, 580.000 mortos, 6,7 milhões de deslocados à força para outros países, milhões de deslocados internamente. A lira síria perdeu 99% de seu valor desde 2011, o PIB despencou de US$65,5 bilhões para apenas US$9 — um colapso de 85% — enquanto mais de 90% do povo sírio vive na pobreza!
No final, descobriu-se que o regime só conseguiu se manter no poder porque foi apoiado militarmente pelas forças russas e pelas milícias do Hezbollah. O envolvimento da Rússia na guerra na Ucrânia e os golpes militares de Israel contra o Hezbollah deixaram o regime nu e paralisado.
O colapso da ditadura de Assad foi o que toda ditadura odiada pelas classes populares merecia. A esquerda deve parar de apoiar tais regimes – no final, isso apenas a expõe e enfraquece. Por outro lado, não apoiar o regime de Assad não significa apoiar os imperialistas ocidentais e/ou o HTS em nome da “democracia”. Para o povo sírio, o dia seguinte não trará nada de bom: nem democracia, nem liberdade, nem paz, nem prosperidade.
Em 26 de novembro, o exército sírio (sob o controle de Assad) ocupava a maior parte do país, mostrada na região em vermelho. Apenas 12 dias depois, a maior parte do território estava sob controle do HTS e seus aliados. Os apoiadores de Assad haviam sido reduzidos à uma área bem pequena no oeste da Síria, na costa do Mediterrâneo.
2. O que o dia de amanhã trará com o HTS no governo?
O HTS é uma organização fundamentalista islâmica (oficialmente listada como uma organização terrorista no Ocidente) e seu dirigente, Abu Mohammed al-Golani (ou Ahmed al-Saraa, que é seu nome real), é um terrorista procurado. Nos últimos anos, mas especialmente desde que assumiu o poder no início de dezembro, Golani tem usado terno e se reunido com diplomatas europeus, tentando mostrar que é um modernista e que eles não têm nada a temer com ele e sua organização.
A UE e os EUA estão jogando esse jogo alegremente, tentando retratar Golani e o HTS como forças moderadas e conciliatórias. Este é apenas outro exemplo da hipocrisia do Ocidente.
Golani declarou que abandonou a Al-Qaeda e o ISIS (Estado Islâmico), de onde vêm suas origens, mas nunca declarou que abandonou as ideias fundamentalistas islâmicas, ou seja, o objetivo de construir um estado baseado na lei do islamismo (Sharia) em vez de qualquer tipo de procedimento democrático que possa permitir alguma forma de participação da sociedade. Para organizações como a HTS, a lei de Deus está acima das leis dos humanos.
Mesmo se assumirmos que o próprio Golani sofreu algum tipo de mutação e abandonou as ideias fundamentalistas islâmicas (o que é improvável), o mesmo não pode ser esperado da HTS como um todo e das forças aliadas a ela. Em termos gerais, para uma organização fundamentalista islâmica, como a HTS, abandonar a lei islâmica, ela teria que passar por algum tipo de guerra civil interna. O que não parece estar na agenda.
Em outras palavras, a perspectiva mais provável é que a HTS estabeleça um novo regime ditatorial islâmico, mesmo que suas características exatas ainda não estejam claras. Os regimes islâmicos podem assumir diferentes formas, como mostram os exemplos do Afeganistão, Irã e Arábia Saudita.
A esquerda, que vê algo progressivo na derrubada de Assad, está iludida. Não há como o povo sírio experimentar democracia, liberdade, paz e até mesmo alguma igualdade limitada (de etnias, religiões e gêneros) sob o HTS.
3. Uma política de “distâncias iguais”? Não, uma política de uma proposta alternativa
A crítica usual que recebemos quando dizemos que não temos que escolher um lado em um conflito intra capitalista ou intraimperialista é que esta é uma política de equidistância (ou de “ficar em cima do muro”) e, portanto, uma incapacidade de tomar uma posição sobre as questões urgentes específicas que a sociedade enfrenta. Este tipo de crítica considera imperativo que escolhamos lados.
Tais críticas perdem o ponto: a verdadeira questão é se nossas opções devem ser limitadas a escolher um dos dois lados reacionários, ou se há uma terceira opção que sirva aos interesses das pessoas da classe trabalhadora (e aos valores da esquerda radical/socialista).
Nós escolhemos esta última. Argumentamos que a esquerda deve apresentar suas próprias posições e análises, independentemente das duas forças reacionárias, o ditador Assad de um lado e os islâmicos do outro.
4. O que isso significaria na prática na Síria?
Vamos ser concretos e práticos. Como os marxistas deveriam agir se tivessem presença dentro da Síria?
Se a esquerda revolucionária tivesse uma presença significativa na Síria, ou pelo menos em uma região da Síria onde exercesse controle com suas próprias milícias (como os curdos no norte e leste, as milícias pró-turcas em enclaves no norte, os drusos no sul, etc.), então ela deveria construir o modelo de sua própria sociedade naquela parte do país. E deveria usá-lo como um exemplo para as outras minorias étnicas ou religiosas em outras partes da Síria, para a classe trabalhadora como um todo, propondo esse modelo para todo o país (e também para os povos vizinhos) e usando suas milícias armadas para defendê-lo contra ataques inevitáveis.
Isso é uma impossibilidade abstrata? Vamos ver o que o exemplo de Rojava na própria Síria pode nos ensinar. Rojava é a região do nordeste da Síria sob controle curdo. Rojava significa “Curdistão Ocidental”. Em 2015, os curdos se juntaram à luta contra o Estado Islâmico (ISIS) – para defender sua terra, sua autonomia e sua história. Sua vitória sobre o ISIS foi histórica – foi a primeira grande derrota do ISIS (com uma estimativa de 10.000 mortos). A milícia curda manteve seus territórios e construiu uma região autônoma com democracia bastante avançada, liberdade e igualdade (étnica e de gênero) muito mais avançada do que qualquer outra coisa que exista no resto do Oriente Médio.
Rojava nunca nacionalizou as unidades econômicas básicas da sociedade, nunca lançou as bases para o poder dos trabalhadores, não porque não pudesse, mas porque a liderança do movimento curdo não queria ir tão longe.
Mas seu exemplo mostra (como uma hipótese de trabalho) que se houvesse um partido de esquerda revolucionário de massa na Síria, mesmo que limitado a algumas áreas ou partes do território do país, ele poderia lançar as fundações, com base na liberdade e igualdade de religiões, etnias e gêneros, sob os controles democráticos da sociedade, para a transição para uma sociedade socialista na qual a economia é administrada e serve ao povo e não aos monopólios corporativos com fins lucrativos. Ele poderia defender suas conquistas com armas e combiná-las com um apelo de classe aos trabalhadores do resto da Síria e um chamado internacionalista aos países vizinhos e além.
Rojava, que significa “Curdistão Ocidental”, a região controlada pelas milícias curdas no norte da Síria
Caso não houvesse uma esquerda revolucionária de massa (o que é o caso hoje), mas apenas (novamente como uma hipótese de trabalho) pequenos grupos ou quadros individuais, quais seriam suas tarefas?
Novamente, eles não deveriam ter como objetivo escolher entre Assad e os fundamentalistas islâmicos, mas teriam que começar uma corrida contra o tempo apresentando sua própria alternativa, com o objetivo de fortalecer suas forças para que um movimento de esquerda revolucionária de massa pudesse ser construído no caminho, como a única maneira de pôr fim ao pesadelo que o povo da região vive diariamente.
A mesma, é claro, é a tarefa no exterior: os marxistas devem explicar qual modelo de sociedade as organizações políticas da classe trabalhadora devem defender, o que a esquerda deve propor tanto em oposição ao modelo de Assad, por um lado, quanto ao de Golani, por outro. Certamente não deve apoiar um contra o outro.
5. Assad é um anti-imperialista?
O argumento de muitos ativistas de esquerda que assumem uma posição pró-Assad é que eles não apoiam o regime de Assad “no nível social” porque é uma ditadura, mas o apoiam no nível geopolítico porque ele resiste aos planos dos imperialistas americanos/ocidentais.
De acordo com esse argumento, o regime de Assad era reacionário no nível social, mas progressivo no nível de antagonismos geopolíticos. E aqui temos uma séria confusão de posições e uma grande contradição: um regime pode ser reacionário no nível social, mas progressivo no nível geopolítico?
O fato de Assad estar do lado da Rússia, China, Irã, etc. não torna seu regime de forma alguma “progressista”. A competição “Oeste-Leste”, vamos chamá-la assim, é uma competição em uma base capitalista, entre os velhos imperialistas (EUA, UE, Grã-Bretanha) que estão perdendo terreno, e os novos imperialistas (China, Rússia, etc.), que estão ameaçando o poder dos soberanos até então absolutos. É muito diferente do antigo conflito – ideológico, político e econômico – entre as economias planejadas do Bloco Soviético (e até certo ponto também da China) de um lado e as economias capitalistas do Ocidente do outro, que durou até 1989.
No conflito entre dois blocos imperialistas, a esquerda não deve apoiar um imperialista contra o outro.
Isso não significa, é claro, que não deva usar o antagonismo entre as potências imperialistas para promover os interesses de seu próprio povo, fortalecer suas próprias posições e construir alianças com forças (internacionais) que também buscam um “caminho independente” além daqueles dos imperialistas. Mas esta é outra questão, outra discussão.
A superficialidade e a ineficácia do argumento a favor do “anti-imperialismo” de Assad são demonstradas pela própria experiência síria. O regime de Assad, sendo completamente reacionário no “nível social”, alienou as massas sírias a tal ponto que tudo o que precisava era de um sopro de vento antes de entrar em colapso, permitindo que os imperialistas ocidentais voltassem sem ter que disparar um tiro. Esse tipo de “anti-imperialismo” não enfraquece realmente o imperialismo ocidental, em última análise, o fortalece.
6. Nunca esquecer o Irã de 1979
Aqueles na esquerda que enxergam a derrubada de Assad pelos islâmicos como um desenvolvimento positivo que abre novas possibilidades para o povo sírio, devem se lembrar do exemplo da revolução iraniana.
Em 1979, o regime do Xá foi derrubado por uma grande revolução das massas trabalhadoras. A esquerda apoiou os mulás de Khomeini como uma alternativa melhor ao Xá, em vez de apresentar a perspectiva do poder socialista dos trabalhadores combinado com a autodeterminação das nacionalidades, especialmente os curdos. Essa era a posição do Partido Comunista pró-soviético (Tudeh), das milícias curdas (Fedayeen) e até mesmo do trotskista SU-QI (Secretariado Unido da Quarta Internacional), que tinha presença no Irã na época (os dissidentes do SU-QI na época já romperam e agora fazem parte do Internationalist Standpoint).
O resultado foi que, assim que Khomeini se estabilizou, ele se voltou contra a esquerda e a destruiu. A esquerda iraniana, 45 anos depois, ainda não se recuperou daquele golpe.
Se, em condições de crise revolucionária, a esquerda não estabelecer para si o objetivo do poder e da derrubada do capitalismo, mas, em vez disso, olhar para quais seções da classe dominante apoiar, ela pagará um preço muito alto no final, muitas vezes com as vidas de seus próprios membros e quadros.
7. O povo palestino não tem nada a esperar do HTS
Uma das características mais marcantes do novo regime islâmico na Síria é o abandono do povo palestino.
Há muitas entrevistas e declarações nas quais o novo regime em Damasco faz propostas a Israel. Em um exemplo recente, o novo governador de Damasco, Maher Marwan, falando em nome de al-Golani, disse em uma entrevista à rede americana NPR:
“Israel pode ter sentido medo. Então avançou um pouco, bombardeou um pouco, etc… Não temos medo de Israel, e nosso problema não é com Israel… não queremos nos intrometer em nada que ameace a segurança de Israel ou de qualquer outro país… queremos paz, e não podemos ser oponentes de Israel ou oponentes de ninguém”
Essas declarações são uma facada nas costas do povo palestino.
A Síria é um campo de interesses concorrentes, não apenas locais, mas também internacionais/geopolíticos. Israel não bombardeou Damasco “um pouco” – desferiu um golpe enorme nas capacidades de defesa da Síria. Destruiu suas defesas aéreas, todas as suas bases de mísseis e sua marinha! A nova liderança islâmica na Síria não só falhou em oferecer qualquer resistência aos ataques israelenses, mas também se comporta como se não entendesse o que está acontecendo ao seu redor.
8. Não tem como haver unificação pacífica da Síria
As forças HTS dominam a Síria Ocidental, a oeste do eixo de Idlib-Aleppo-Hama-Homs-Damasco. Mas a maior parte da Síria está fora de seu controle efetivo e eles estão em negociações com as outras forças que controlam diferentes partes da Síria para manter o poder central.
O nordeste é dominado por milícias curdas, as Forças Democráticas Sírias, que controlam cerca de 25% do país, com apoio ocidental (até agora). No norte, há áreas muito importantes dominadas pelo Exército Nacional Sírio, que é controlado pela Turquia. No sudoeste (fronteira com o Iraque e a Jordânia), há uma variedade de milícias (cerca de 50) que juntas formam a chamada Frente Sul – cristã, drusa e outras – muitas das quais temem a ascensão dos fundamentalistas islâmicos e buscam alianças para protegê-los. Alguns (drusos) estão se voltando para Israel, pedindo que incorpore suas terras. Há também o ISIS (Estado Islâmico), que conseguiu expandir um pouco as áreas sob seu controle desde a queda de Assad.
Em termos de forças externas, Israel aproveitou a crise para expandir os territórios que detém na Síria – as Colinas de Golã – e conquistar novos territórios na direção de Damasco, da qual está a apenas algumas dezenas de quilômetros de distância. Rússia e EUA também têm presença militar (bases).
Finalmente, provavelmente deveríamos deixar em aberto a possibilidade de que forças leais a Assad, atualmente confinadas a pequenos bolsões no oeste, possam reter algum território e tentar se reagrupar.
As diferenças entre todas essas forças são tão grandes que um único centro de poder não será facilmente aceito. Conflitos militares parecem inevitáveis, embora a escala exata não seja possível de se prever neste estágio.
9. Vencedores e perdedores
O resultado da guerra civil síria não é um sucesso tão grande para o Ocidente quanto a mídia ocidental tenta fazer parecer, nem é uma derrota estratégica para o bloco Rússia-China.
É, claro, um sucesso para o Ocidente no sentido de que enfraquece seus rivais na região, mas não cria um estado leal ao Ocidente. E é um sério revés para a Rússia, mas não parece razoável esperar que o novo regime corte laços com a Rússia e a China, como o Ocidente gostaria. Por mais fluidas que as coisas sejam, e devemos estar abertos a todas as possibilidades, o mais provável é que os novos governantes na Síria busquem manter relações com todos os lados.
Os dois principais vencedores da queda do regime de Assad são Turquia e Israel.
Os principais perdedores são o Irã e seus aliados (Hezbollah no Líbano, os Houthis no Iêmen e o Hamas na Palestina).
10. Turquia
O HTS agiu como um aliado de Ancara no processo de derrubada de Assad, embora não pertencesse às milícias controladas de perto e diretamente pelo regime de Erdogan (o Exército Nacional Sírio). A vitória do HTS foi triunfantemente apresentada na Turquia como uma vitória não apenas para o povo sírio, mas também para o povo turco.
As relações entre o HTS e a Turquia são tão próximas que está bem claro que a Turquia vai desempenhar um papel direto na política do novo regime.
O fato de a Turquia desempenhar um papel muito importante como o aliado mais próximo do regime, no entanto, não significa que o novo regime sírio estará na órbita do Ocidente (como alguns da esquerda argumentam). A Turquia é uma potência regional muito poderosa que não é controlada pelo Ocidente; tem sua própria agenda e sua própria política autônoma, e está manobrando entre os interesses das principais potências – o Ocidente, a Rússia e a China.
No norte da Síria, a ofensiva do Exército Nacional Sírio, apoiado pela Turquia, contra as milícias curdas já começou. Erdogan, cujas ambições imperialistas foram impulsionadas pela vitória de seus aliados do HTS, já ameaçou os combatentes curdos das Forças Democráticas Sírias de que eles devem depor suas armas ou serão enterrados com elas.
Os curdos, é claro, não vão depor suas armas. Após décadas (séculos, na verdade) de opressão, eles conseguiram ganhar alguma autonomia sobre territórios na Síria e no Iraque – eles não vão se render simplesmente a Erdogan, eles vão defender sua autonomia. Eles mostraram repetidamente que são guerreiros experientes, especialmente em sua luta contra o ISIS e as forças de Assad. Por outro lado, não se deve subestimar os golpes que o exército turco é capaz de infligir ao movimento curdo.
No próximo período, é muito provável que a esquerda internacionalista em todo o mundo tenha que mostrar sua solidariedade com os curdos sírios na luta por seu direito à autodeterminação contra a máquina de guerra turca. O fato de os curdos estarem sendo armados pelos EUA, neste estágio, não pode levar a esquerda a abandonar suas posições internacionalistas.
11. Israel
Israel é o segundo grande vencedor porque o colapso de Assad enfraquece o chamado “eixo de resistência” entre o Irã, a Síria, os Houthis no Iêmen, o Hezbollah no Líbano e o Hamas em Gaza.
Embora, politicamente, Israel esteja isolado internacionalmente por causa de sua ofensiva genocida em Gaza (e junto com Israel, seus aliados nos EUA e na Europa também enfrentam semelhante repulsa internacional), militarmente é um vencedor claro, tendo desferido golpes sérios primeiro no Hamas e depois no Hezbollah.
Isso certamente não significa o fim do Hamas ou do Hezbollah, mas está claro que suas táticas e métodos não oferecem uma saída para o povo palestino; não há como eles levarem à derrota do estado israelense.
Imediatamente após a queda de Assad, Israel expandiu-se para o sudoeste da Síria, expandindo sua ocupação das Colinas de Golã, quase entrando nos arredores de Damasco e proclamando que as Colinas de Golã nunca seriam devolvidas à Síria.
De acordo com um relatório do Jerusalem Post, um navio de guerra israelense recebeu a ordem de atacar a frota síria. Sua missão era realizar ataques de mísseis de precisão em 15 navios de guerra, representando a maior parte da força naval síria. Os 15 navios foram atingidos e afundados em minutos! Da mesma forma, Israel afirma ter destruído a defesa aérea, a força aérea e as bases de mísseis da Síria.
Israel também atacou o Irã em duas grandes ondas separadas.
Na primeira fase, o Irã respondeu (em 1º de outubro) enviando centenas de drones e projéteis, vários dos quais penetraram nas defesas aéreas de Israel (o chamado Domo de Ferro), para grande irritação do regime de Netanyahu. Israel respondeu em 26 de outubro com uma segunda onda de ataques aéreos contra alvos e instalações militares. O Irã respondeu com ameaças bombásticas, mas meses depois não fez nenhuma tentativa de retaliação!
Uma parte da esquerda parece não querer reconhecer o fato de que Israel é capaz de confrontar seus rivais militarmente em várias frentes ao mesmo tempo, embora isso já tenha sido demonstrado em três guerras com o mundo árabe no passado. Isso se deve obviamente ao apoio total do imperialismo ocidental. Essa parte da esquerda parece não querer admitir que Israel venceu o conflito atual militarmente – por mais desagradável que isso seja, ou melhor, porque é muito desagradável. Mas a esquerda não pode prosseguir com base em abordagens emocionais; ela precisa de uma abordagem pragmática baseada na realidade objetiva. Só então ela pode tirar as conclusões políticas corretas.
12. O “Eixo da Resistência”
O Eixo da Resistência é uma aliança de forças em torno do Irã que inclui, como mencionado acima, os Houthis no Iêmen, o Hezbollah no Líbano, o Hamas na Palestina e forças islâmicas semelhantes no Iraque e na Síria (e o governo Assad até sua queda).
Seções significativas da esquerda oferecem tolerância ou mesmo apoio a esse “eixo” – ou pelo menos se recusam a criticá-lo por causa do suposto papel anti-imperialista que ele desempenha.
Mas até que ponto esse Eixo é anti-imperialista? Temos que começar pelo fato de que essas forças estabeleceram (no caso do Irã) ou são a favor de estabelecer (no caso de outros grupos islâmicos) regimes religiosos baseados na Sharia, o que significa que as leis de Deus, supostamente descritas no Alcorão, são superiores às leis dos humanos e impostas a eles por meio, obviamente, da casta de clérigos que detêm o poder real.
O quanto essa abordagem pode realmente minar os colonialistas/imperialistas dos EUA e da UE?
O quanto essas ideias podem ser atraentes para os povos não muçulmanos da África, América Latina e Ásia? Mas, também, tolerar ou apoiar essas forças coloca a esquerda em conflito com grandes e, na verdade, as mais militantes seções das massas em países onde o islamismo é a religião dominante. O Irã é o exemplo mais característico — lá, a classe trabalhadora, os jovens e as mulheres têm travado lutas heróicas contra um regime implacável por muitos anos.
A esquerda tem a responsabilidade de afirmar uma posição clara a favor da derrubada desses regimes e não se esconder atrás de seu suposto caráter anti-imperialista. Esta é uma pré-condição para tomar uma posição consistente contra o imperialismo ocidental e para convencer os movimentos populares e de trabalhadores nos países onde intervém, seja no Leste ou no Oeste, de suas posições.
Se a Esquerda não apoia a luta dos movimentos dos trabalhadores, jovens e mulheres contra os islâmicos em diferentes países, então a única alternativa que lhes resta é recorrer aos supostos governos “democráticos” do Ocidente.
A Esquerda pode e deve apoiar a luta do povo da Palestina, do povo do Líbano, do Irã, etc. Mas isso não deve ser traduzido em apoio às forças na liderança desses países. Pelo contrário, deve ser traduzido em críticas aos métodos e táticas desses líderes.
E isso precisa ser acompanhado pela alternativa proposta pela Esquerda, que não pode ser outra senão: liberdade dos grilhões imperialistas, respeito aos direitos democráticos, sindicais e humanos, igualdade de gênero, autodeterminação das nacionalidades oprimidas, poder para os trabalhadores e socialismo.
13. A hipocrisia do Ocidente
Assim que o HTS chegou ao poder, os governos europeus levantaram a questão de interromper a concessão de asilo aos refugiados sírios.
A Grécia e a Grã-Bretanha foram as primeiras a reagir, a Áustria propôs “repatriações e deportações organizadas”, na Alemanha um ex-ministro propôs dar a eles 1.000 euros e um voo fretado e assim por diante.
Parece que para os europeus “iluminados”, os fundamentalistas islâmicos do HTS são um regime que fornece as liberdades e a segurança necessárias, especialmente para mulheres, diferentes nacionalidades e religiões.
Tanta hipocrisia, tantas mentiras, tanta deturpação da realidade óbvia é até difícil de descrever em palavras.
14. Conclusões
Algumas conclusões básicas podem ser tiradas de tudo o que foi dito acima.
A região continua tão inflamável quanto era antes da queda de Assad. Nenhum problema, nem para o povo sírio nem para a região, será resolvido pela derrubada do regime de Assad.
Foi demonstrado mais uma vez que Israel não pode ser derrotado militarmente por uma coalizão de estados árabes ou islâmicos. O ataque liderado pelo Hamas a Israel em 7 de outubro não trouxe os resultados esperados por muitos palestinos. Ele abriu um enorme ciclo de derramamento de sangue pelo qual as massas palestinas pagaram e continuam a pagar um preço altíssimo.
Ao mesmo tempo, Israel emergiu mais forte do confronto militar, enquanto o chamado “eixo de resistência” foi enfraquecido. Politicamente, no entanto, Israel está tão isolado internacionalmente quanto sempre esteve. Junto com Israel, as potências que o apoiam — os EUA e as potências europeias — também viram seu isolamento aumentar.
Essa situação acelera o desenvolvimento de uma consciência radical de esquerda em nível internacional — e isso é muito importante. Mas o amadurecimento desses processos leva tempo e só adquirirá um significado prático real quando for refletido na criação/emergência de novas formações da esquerda radical/socialista em nível internacional, preenchendo o enorme vácuo que existe na esquerda hoje.
O capitalismo não pode oferecer nenhuma solução para os problemas da região. Este precisa ser o ponto de partida para as posições da Esquerda – e com isso queremos dizer principalmente a esquerda anticapitalista, porque os partidos tradicionais de esquerda há muito já se degeneraram.
A Esquerda precisa assumir uma posição completamente independente das forças capitalistas e apresentar sua própria proposta de classe, internacionalista e revolucionária. Esta só pode ser uma: a luta de classes comum dos povos da região contra o imperialismo, a opressão nacional, os ditadores locais e os islâmicos – com o objetivo do poder da classe trabalhadora e do socialismo.
Antes era impensável para a Esquerda, não apenas a Marxista, mas também a Esquerda tradicional/reformista, não apresentar a visão do socialismo. Hoje, essa visão (mesmo em termos de propaganda) foi abandonada.
A esquerda Marxista, que está em crise internacionalmente, deve relembrar suas tradições revolucionárias e projetar a perspectiva socialista com ousadia e otimismo. Isto por uma razão inegável: é o único caminho a seguir para a humanidade; a única maneira de evitar a barbárie para a qual o capitalismo está levando a vida na Terra.
Não é suficiente para a esquerda marxista falar em termos gerais a favor da revolução. Tivemos muitas revoluções no passado e teremos muitas mais no futuro. Em 2011, tivemos desenvolvimentos revolucionários na região (a “Primavera Árabe”), que também engolfou a Síria. Mas a revolução não saiu vitoriosa, em vez disso, abriu caminho para o Estado Islâmico no Iraque e na Síria e quase 14 anos de guerra civil (até agora). A revolta revolucionária foi derrotada precisamente porque não havia forças políticas para conduzi-la ao poder dos trabalhadores e ao socialismo. Como marxistas, temos o dever de construir essas forças. Começando pelos países em que vivemos e lutamos. E isso é algo que certamente contribuirá muito para construir forças revolucionárias também nos países do Oriente Médio, tornando assim a visão de uma sociedade alternativa e socialista uma perspectiva realista.