A publicação do presente texto, nesta terça-feira, dia 13 de dezembro, data de aniversário de Paulo Aguena, é mais uma das nossas homenagens e lembranças da sua memória. Trata-se um pedido dele em vida. Há cerca de dois meses Cata havia pedido para Mauro Puerro editar como artigo público um texto de reflexão interna da Resistência que ele havia escrito junto com outros camaradas. Sobre esta primeira edição ele trabalhou este artigo. No hospital, há duas semanas, Paulo pediu a Mauro que fizesse a edição final orientando-o no conteúdo e forma. O trabalho foi concluído dias antes do seu falecimento.
Cata considerava a questão do regime político nas organizações revolucionárias chave para a compreensão das crises e divisões na tradição trotskista e, por consequência, para se pensar o projeto de reconstrução de uma alternativa revolucionária internacional. Esse artigo representa o esforço de elaboração do autor sobre um tema crucial aos socialistas. A publicação de ideias de Cata no dia do seu nascimento é mais uma prova de que ele segue presente entre nós, contribuindo para a luta socialista e a reflexão crítica marxista.por Paulo Aguena “Catatau”*Publicado em: 13/12/2022 05h00
Há uma pergunta e uma grande dúvida que invade a cabeça de milhares de militantes sérios e honestos. Por que ocorrem tantas rupturas na esquerda revolucionária, incluindo os que reivindicam o trotskismo? A maioria das direções das correntes revolucionárias afirma que as diferenças políticas são a causa fundamental das cisões. Este texto vai em outra direção. As diferenças políticas têm muita importância e já geraram divisões inevitáveis, mas, em boa parte das vezes, as rupturas se dão por problemas de regime e método interno às organizações.
Nem sempre as diferenças políticas são as causas das crises e rupturas
Todo partido é constituído para levar a cabo um programa, tendo, portanto, um fim político. Por isso não negamos que as diferenças políticas sempre estão na base das crises e das rupturas. Mas nem sempre é a única ou mesmo a principal causa. Uma conclusão definitiva exigiria um estudo mais apurado de casos, mas já é possível afirmar que elas também são motivadas por procedimentos fracionais e burocráticos, coisa que infelizmente tornou-se bastante comum no movimento trotskista.
Nos exemplos recentes de crises e rupturas este componente está presente em maior ou menor importância. Quando posições do “principal dirigente” tornam-se minoritárias ou são questionadas o regime se torna insustentável. Na ruptura do CWI (2019) por exemplo, nos parece que quando o dirigente histórico ficou em minoria, tão logo veio a caracterização que a posição adversa era revisionista e pequeno-burguesa, e passou-se então a não o reconhecer o organismo como legítimo. Com isso começou a primeira ruptura. No entanto, a luta fracional estabelecida na corrente não terminou e no curso do debate ocorreram outras duas rupturas e muitas saídas individuais. Ou seja, a corrente explodiu em quatro partes. Assim, em questões de meses, perderam o que haviam construído em décadas.
Mas esse caso não é uma exceção ou um fenômeno novo. Na verdade, é bastante antigo e acompanha como uma sombra as crises da IV Internacional. Um caso emblemático foi a própria ruptura da IV Internacional que deu origem ao Comitê Internacional em 1953, a qual podemos considerar a mais grave crise da IV. Ela iniciou uma diáspora, cuja dinâmica não foi mais revertida, apesar da reunificação parcial ocorrida em 1963 que deu origem ao Secretariado Unificado.
Como sabemos, no imediato pós-guerra foram se acumulando importantes debates e diferenças. Dentre eles podemos citar os que envolviam o caráter dos novos estados do Leste; o processo revolucionário na Iugoslávia e a política frente a Tito; a posição perante a guerra fria e a possibilidade ou não de uma terceira guerra mundial; sobre o desenvolvimento da economia no pós-guerra; sobre o papel dos partidos comunistas diante desse novo cenário; sobre o chamado “entrismo sui generis” nesses partidos, etc.
No curso dos debates as posições críticas às elaborações do Secretariado Internacional foram ficando em maioria. Segundo Mercedez Petit, esses setores chegaram a reunir em torno de 80% da Internacional. No entanto, a ruptura tornou-se um fato incontornável. Ora, porque isso ocorreu? Porque esses 80% não exerceram a maioria no IV Congresso e ganharam a direção da IV, evitando assim a cisão? Simplesmente porque isso tornou-se impossível devido à conduta burocrática da direção pablista no trato das diferenças. Esta fez de tudo para manter uma maioria até chegar à cisão. Vejamos esse processo mais de perto.
A crise que resultou na ruptura de 1953 teve suas primeiras expressões mais importantes já na segunda metade dos anos 40. Na Inglaterra, em 1946, sob orientação do SI, ocorreu a ruptura da minoria do RCP dirigida por Healy, na medida em que a maioria (Ted Grant, Halston e Bill Hunter) discordava das caracterizações da direção internacional sobre o Leste, ao mesmo tempo em que se negava a fazer o “entrismo” no Labor Party. Posteriormente, em 1950, após uma reunificação forçada pelo SI em 1949, operou-se a expulsão da maioria no 8º Pleno da IV Internacional de abril de 1950. No entanto, isso não impediu que a luta fracional continuasse. Eliminada a antiga maioria, no ano de 1953, prévio ao IV Congresso, a seção inglesa já fazia um entrismo “clandestino” dentro do Labor. No entanto, nesse momento foi Gerry Healy quem apresentou críticas aos documentos pré-congressuais do SI na reunião do CC da seção inglesa. Jack Lawrence teria então exigido que Healy atuasse de forma centralizada no CC, ou seja, em defesa da posição da direção internacional da qual ambos eram membros. Por sua vez, o SI logo veio a repreender Healy pela “quebra de centralismo”. Uma luta fracional se abriu entre Healy e Lawrence no interior da seção inglesa sob a forma de “pablistas” e “anti-pablistas”. O SI interveio na seção em favor da ala minoritária constituída em torno de Lawrence, reconhecendo-a como maioria.
Outro fato relevante foi que na França, desde o 9º Pleno de novembro de 1950, a maioria do PCI dirigida por Marcel Bleibtreu, também havia se oposto à maioria do SI divergindo sobre a teoria dos campos (URSS-EUA), a caracterização de uma provável terceira guerra mundial, a mudança da natureza contrarrevolucionária da burocracia soviética e, por fim, o chamado “entrismo sui generis” nos partidos comunistas. O III Congresso da IV (1951) deu plenos poderes à direção internacional para intervir na seção francesa, obrigando-a a implementar o entrismo no PC francês, cuja negativa resultou na suspensão de 16 membros de seu CC transformando a minoria em maioria na direção. No 11º pleno da IV realizado em maio de 1952, a suspensão foi anulada, mas o secretariado do PCI ficaria sob a direção da minoria e o CC sob a supervisão do SI, a cargo de Mandel. Essa luta continuou até que Lambert decidiu convocar de forma unilateral o VIII Congresso do PCI em julho de 1952, sendo, por isso, finalmente expulso no 12º Pleno da IV realizado em novembro do mesmo ano.
Já nos EUA, apesar de que a maioria da direção do SWP (a maior seção da IV) já tivesse posições críticas a Pablo, até então não havia se oposto a essas aberrações metodológicas. Novack, por exemplo, delegado norte-americano ao III Congresso, apoiou a moção que dava o direito à direção internacional de intervir na seção francesa. Os franceses chegaram a enviar uma carta à direção do SWP denunciando as perseguições, mas Cannon respondeu como se isso não fosse nada demais. Finalmente, nesse mesmo ano, o SWP viu nascer no seu interior uma fração opositora à direção encabeçada por Cochran-Clarke-Bartel. A questão se agravou quando se descobriu que tal tendência era animada pelo SI através de Pablo. Depois de uma dura luta fracional a tendência foi expulsa no 9º Pleno do SWP, realizado em outubro de 1953, sob a acusação de conduta desleal e boicote à política da organização. Neste mesmo pleno, a direção do SWP decidiu, então, lançar uma carta-manifesto conclamando a constituição de uma fração pública à direção da IV que, em novembro, terminou dando origem ao Comitê Internacional. O objetivo inicial era o de adiar o IV Congresso e remover Pablo da condição de secretário-geral com o objetivo de restabelecer o debate democrático. No entanto, isso se tornou impossível porque o CEI, em seu 14º Pleno, suspendeu os signatários da carta passando a reconhecer como seções oficiais as minorias expulsas da seção norte-americana e inglesa.
Então, como podemos dizer que a ruptura da IV em 1953 – a mais importante crise da IV depois da morte de Trotsky, responsável por uma diáspora que marcou o destino do trotskismo – ocorreu por diferenças políticas? É claro que as diferenças políticas estavam presentes, mas qual foi o fator que determinou a ruptura? A política ou o método/deformação do regime? Não há dúvida que foi o método: a cisão foi produto de um regime burocrático que impediu não somente a discussão democrática, mas principalmente que a maioria fosse exercida.
Hoje sabemos que em cada um dos embates políticos existentes dentro das seções da IV neste período sempre houve um setor minoritário ou majoritário que defendia as posições políticas mais corretas que a da maioria do SI, e que podem ser comprovadas pelo estudo da história. Um exemplo é o da avaliação de que a economia mundial entraria em colapso no pós-guerra, defendida por Mandel, que levaria a um levante das massas em todo mundo e a uma 3ª Guerra Mundial entre o estado operário (a ex-URSS) e os países capitalistas. Essas análises e caracterizações se demonstraram erradas, mas todos os setores que se levantaram contra elas foram tratados de forma burocrática, resultando em crises e rupturas.
Nem mesmo diferenças sérias e profundas necessariamente implicam rupturas
Pode-se contra-argumentar que isso não é bem assim, já que o acionar de Pablo e do SI era guiado por objetivos políticos. É verdade, mas como vimos não foram elas que levaram diretamente à cisão. Sob um regime saudável a ruptura não seria incontornável. Bastava que o SI aceitasse a sua derrota e permitisse que a política votada por maioria fosse testada à luz da luta de classes. Ocorre que essa não era a compreensão de centralismo-democrático do SI. Na sua cabeça, os fins políticos justificavam tudo, inclusive a utilização dos métodos burocráticos que levaram à cisão.
Ocorre que uma posição política, por mais correta que seja, não justifica a utilização de métodos burocráticos para que se torne majoritária. Aliás, não existe uma relação mecânica entre as posições políticas e o método. É possível ter um procedimento metodológico correto e defender uma política incorreta, como também é possível ter uma política correta e adotar um procedimento metodológico incorreto.
O exemplo da postura de Lenin diante da expulsão de Paul Levi do KPD (PC Alemão) pode ilustrar isso. Diferente da ocasião em que defendeu a expulsão de Zinoviev por se opor publicamente à tomada do poder em Outubro, Lenin comungava da mesma opinião que Levi sobre o esquerdismo aventureiro da direção do partido comunista alemão quando lançaram-se à “Ação de Março” (1921), uma tentativa de greve insurrecional que culminou na derrota do proletariado e numa brutal crise do VKPD (Partido Comunista Unificado da Alemanha) que perdeu dois terços dos 500 mil militantes que haviam acumulado depois da fusão com o USPD (Partido Socialista Independente). Apesar disso, Lenin apoiou a expulsão de Levi por quebra de disciplina, já que ele havia publicado um folheto criticando a orientação do partido.
Apesar de polêmica, a posição de Lenin no episódio acima mostra que para ele método e política possuíam uma relativa independência. Tanto no caso de Zinoviev com quem tinha desacordo, como de Levi com quem tinha acordo, sua posição foi a mesma. Dizemos relativa, porque, claro, toda política que questiona princípios programáticos, se for coerente, resultará em métodos, regime e concepção de partido diferentes. Por exemplo, o programa reformista da II Internacional deu origem ao modelo socialdemocrata de partido (partido frente), enquanto a III originou o modelo bolchevique (centralista democrático). Mas um regime político centralista-democrático não implica monolitismo político. Tampouco implica em temor de fazer os debates de forma nítida com o fim de explicitar e localizar as diferenças para ver como a elaboração pode avançar. Pelo contrário, o centralismo em torno a uma determinada orientação (ou ação) política deve ser precedido de debates que muitas vezes envolvem diferenças bastante sérias e profundas.
Recorrendo novamente a exemplos históricos podemos citar os debates ocorridos no partido bolchevique após a tomada do poder: as polêmicas encarniçadas sobre o fim da guerra e o acordo de Brest-Litovsky; sobre a guerra civil e a que envolveu a invasão da Polônia; os debates sobre a NEP e a transição ao socialismo; sobre o papel dos sindicatos, etc. A maioria desses debates tinha consequências muito sérias na medida em que boa parte deles colocava em jogo a própria existência do jovem estado operário russo. Em todos eles os máximos dirigentes do partido se colocaram em oposição, mas isso não necessariamente os levou à ruptura. Disso se conclui que, desde o ponto de vista político, as rupturas são escolhas que implicam numa correta avaliação do grau das diferenças envolvidas numa determinada discussão. Trataremos disso a seguir.
As rupturas e os diferentes sistemas de normas (juízos de valor) que as determinam
Causadas por questões políticas ou de procedimento, como dissemos acima, as rupturas são antes de tudo uma escolha, uma decisão política. São, portanto, determinações subjetivas e não objetivas, produto direto e automático da luta de classes no interior da organização revolucionária. Entre a crise e a ruptura existe uma mediação que envolve a interferência humana baseada num juízo de valor. Em outras palavras, as rupturas não ocorrem se os sujeitos políticos envolvidos na discussão não quiserem.
A questão que se coloca, então, é a seguinte: quais os critérios que devem nortear a decisão de romper ou não uma determinada organização? Consideramos que o sistema de normas (juízo de valor) que toma como critério único ou principal as diferenças políticas é equivocado. Ele subvaloriza a importância que as questões metodológicas e de regime possuem em toda discussão, quando num sentido elas são inclusive as mais importantes.
Isso é assim, em primeiro lugar, porque um regime saudável é o que garante o próprio processamento das diferenças políticas, tanto na fase de sua elaboração quanto na da aplicação da orientação votada. Ao permitir o confronto permanente entre a política e a realidade, o regime permite também superar as diferenças, seja porque a realidade comprovou a justeza de uma delas, seja porque simplesmente um dos contendores considerou que sua posição inicial era equivocada, seja, por fim, porque a própria realidade se modifica, deixando ultrapassados determinados debates.
Em segundo lugar, porque ao processar a política, o regime cumpre o papel de garantir o funcionamento e, com isso, a própria preservação da organização. Assim, enquanto os debates políticos passam, a organização permanece. Em boa medida, isso se deve ao regime, quando ele é capaz de garantir um saudável embate político das diferenças (o exercício da democracia interna), permitindo a aplicação posterior do centralismo na ação da organização e, por fim, a realização de um balanço já em base ao confronto das ideias e posições políticas votadas com a realidade.
O sistema de normas que dão base a juízos de valores que não levam em conta ou secundarizam o papel que o regime cumpre na construção da organização revolucionária, e, no caso particular, nas próprias discussões políticas, é um dos motivos que impedem o desenvolvimento da organizações, quando não as condenam à própria destruição ou extinção. Sob a consigna “colocar a política no posto de mando” costumou-se fazer de tudo para ganhar uma discussão política: adotam-se medidas burocráticas, realizam-se manobras políticas que semeiam a desconfiança, ou mesmo a ruptura de relações de confiança; perseguem-se ou afastam dirigentes/quadros (que às vezes demoraram anos ou décadas para se formarem) dos organismos ou da própria organização pelo simples fato de terem diferenças políticas; destroem-se equipes que custaram muito a serem construídas, substituindo-as por camarilhas formadas por afinidades políticas ou laços pessoais. Esquece-se dessa forma que a principal matéria-prima para a construção de uma organização revolucionária são seus próprios militantes. Sem eles não há política, intervenção na luta de classes, finanças, propaganda, formação teórica, etc. Enfim, não há nada, ou melhor, não há sequer uma organização.
Por outro lado, esse sistema que tem como único balizador a política, leva a que dirigentes mais inexperientes e/ou com menor formação marxista, ou seja, com menor capacidade para discernir quando uma determinada diferença política implica ou não em ruptura, terminem tomando decisões equivocadas, cruzadas por aberrações metodológicas. Leva também a que dirigentes mais experientes e/ou capazes, mas metodologicamente deformados, rompam a organização com o fim de impor a qualquer custo sua posição política.
Assim, em nome de “colocar a política no posto de mando”, termina-se colocando um sinal de igual entre rupturas justificadas e injustificadas, rupturas corretas e incorretas, rupturas necessárias e desnecessárias, rupturas progressivas e reacionárias. Com isso, tal sistema de normas levou a uma banalização – e, até mesmo, a uma naturalização – das rupturas, fazendo com que essas se tornassem um traço característico das organizações trotskistas no decorrer da história.
A resultante desse acionar foi que a luta pela construção da organização revolucionária visando superar a crise de direção se tornasse uma luta de soma zero. Por não aceitar que essa situação siga assim é que damos muita importância a essa questão. Não nos conformamos que o trotskismo aos olhos da vanguarda e de setores das massas trabalhadoras se assemelhe a caricatura que os nossos inimigos fazem de que “basta juntar dois trotskistas que surgirão duas organizações diferentes”, ainda que a história tenha dado motivos aos nossos detratores.
As causas das deformações de regime
O que explica a adoção de tal sistema de normas que terminam resultando na autodestruição? Podemos citar vários fatores que já vinham atuando antes mesmo da morte de Trotsky abrir a crise de direção da IV: o ambiente de seita provocado pela marginalidade política e a pouca implantação social da organização em boa medida causada pelas perseguições do stalinismo; a existência de direções nacionalistas; o peso da própria extrema-direita e do fascismo. A isso se somam as sucessivas derrotas (incluindo os erros políticos) que impediram o desenvolvimento da organização e transformavam a tomada do poder, o eixo do programa, numa espécie de miragem. Também se acrescem as frustrações provenientes da impossibilidade/incapacidade de superar a “crise de direção revolucionária” do proletariado; etc., etc. Mas existe um motivo que os trotskistas parecem não se dar conta ou importância: a assimilação dos métodos stalinistas por parte do movimento trotskista.
Não esqueçamos que o stalinismo foi por décadas o principal aparato contrarrevolucionário dentro do movimento operário, cuja autoridade repousava no fato de ter conquistado a posição de herdeiro da revolução de Outubro, reforçado pelo papel que a URSS, apesar de Stalin, terminou cumprindo na derrota do nazifascismo. Nessa condição era inevitável que suas concepções influenciassem o conjunto do movimento operário e suas organizações, incluindo as organizações marxistas revolucionárias, dentre as quais se inserem as organizações que reivindicam o trotskismo. Nesse ambiente, o combate contra os métodos stalinistas não impediu que de alguma forma o movimento trotskista os assimilasse. É muito comum isso ocorrer entre povos vencidos e vencedores, conquistados e conquistadores.
Neste sentido, chama a atenção o fato de que os procedimentos burocráticos (medidas centralizadoras) adotados pelo SI/Pablo e que levaram à cisão da IV em 1953, encontravam respaldo nas mudanças estatutárias ocorridas no II Congresso de 1948. Tais mudanças de caráter centralista outorgavam todo poder à direção da Internacional, incluindo o direito de intervir, expulsar, etc. O mais intrigante é que o único voto contrário às tais mudanças foi o de Grandizo Muniz (Espanha). O próprio Moreno votou a favor e não foi porque se intimidou – era um jovem que estava estreando nos debates da IV. Tanto é assim que ele teve a coragem necessária de apresentar uma emenda de cunho democrático (derrotada) que dava o direito de se publicar boletins de discussão fora do período de pré-congresso. Na verdade, a aprovação quase unânime do novo estatuto revela o quanto os quadros dirigentes da IV de alguma maneira já estavam impregnados de uma concepção burocrática em termos de regime.
Uma conclusão reflexiva e necessária
Por sermos parte do movimento trotskista, carregamos essa herança fruto da pressão histórica exercida pelo stalinismo e pela marginalidade a que ficamos condenados. Ninguém é naturalmente imune a ela. Do que se trata é ter consciência disso e travar um combate consciente e cotidiano contra esta deformação.
O caráter fracional das lutas políticas do passado e do presente não é produto do acionar de pessoas de má índole, mas de uma concepção que por décadas, infelizmente, acompanha o movimento trotskista e toda esquerda revolucionária. As experiências passadas já nos bastaram. Justamente por entender que tal concepção é produto de derrotas e da marginalidade imposta principalmente (não só) pelo stalinismo é fundamental discutir este tema com profundidade. A tarefa de unir os revolucionários em base a regime e método saudável está colocada na ordem do dia. A crise do capitalismo nos exige isso.
Paulo Aguena (Catatau)
* Este texto foi uma elaboração coletiva, assinado em 2020 por André Freire, Paulo Aguena “Catatau”, Genilda Souza, Gloria Trogo e Waldo Mermelstein. Foi editado para publicação por Mauro Puerro em 2022, a pedido de Catatau.